Foi o que você falou para mim hoje, mãe. Esse não foi um sonho como aqueles em que te sinto aqui, bem pertinho, mas mesmo assim foi intenso.
Você havia voltado do mundo dos mortos e queria saber como estavam as coisas. Parecia desnorteada, como se houvesse se desplugado da vida real por um ano inteiro e agora voltava, ainda incerta. Expliquei que papai estava cuidando de tudo, cuidando da gente, mas você não relaxava. Queria saber tintim por tintim o que estava acontecendo. Sabia que eu estava escondendo alguma coisa.
Sim, mãe, eu tinha um segredo. Eu estava de partida. Você não gostou da ideia, quis ver os documentos, brigou com o juiz, tentou desfazer o que já havia sido feito, mas eu te acalmei. “Era o mais justo, mamãe”, eu repetia. Aí você congelou novamente, como naquela noite em que te encontrei sem vida no chão da sala.
“Ah, não”, meu coração gemeu. Repousei a mão em seu ombro e apertei de leve, procurando a vida em seu corpo. Você arregalou os olhos ao meu toque.
“Desculpa, esqueci de desmorrer”, você me disse, com um rápido espasmo atravessando seu corpo. Meu coração afrouxou de alívio. Ela ainda estava aqui.
Te peguei pela mão e corri contigo para mostrar minha casa nova, improvisada num galpão no meio de um grande e verde quintal. Você quis saber o porquê. Te expliquei que era o mais justo, e que eu estava feliz. Muito feliz. O barrigão de 6 meses à mostra era a primeira imagem que eu quis que você tivesse quando abrisse os olhos. A decoração artesanal, o cheiro de mato fresco e o outono que se aproximava coloria de alegria esse meu sonho. Você só observava, um pouco menos receosa, talvez já se deixando contagiar pela minha empolgação. Talvez tivesse desacostumado com o lado de cá, talvez só quisesse ter certeza de que eu sabia o que estava fazendo. Eu sabia, mãe.
Esse não foi um dos sonhos em que me senti eu mesma conversando sobre minha vida real contigo, mas significou muito pra mim. Nele, você parecia desnorteada, como se houvessem te desplugado e só agora tivesse voltado para saber se está tudo bem. Mas nossa relação não é assim.
Você é a voz no meu ouvido dizendo “vai com calma”
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Você é a bronca no final de uma briga “mas você é teimosa, hein?”
Você é o alento depois de um dia difícil “shhhh, passou, passou, Petinha”
Você é meu compasso moral quando minha educação falha “que vergonha, Roberta, não foi assim que te ensinei”
Você é meu incentivo quando quero desistir, mas não desisto “viu, filha, não falei que você ia conseguir?”
Você é meu desejo de bom dia, o último canto de boa noite
Você é meu coro quando alguma coisa, que não parecia que ia dar errado, dá errado “ai, minha mãe do céu”
Você é o vozeirão que me chama de volta
quando estou perdida
quando estou perdida
Você é aquela que faz sair da minha zona de conforto, que me empurra pro mundo, que me lembra de não depender de ninguém
Você é para quem dedico todas as minhas vitórias, quem acalenta todos os meus prantos, quem torce e briga e ama e cuida e apronta das suas aí de cima pra me ajudar
Você é minha intermediária com Deus, para quem eu rezo, rogo, peço e imploro, do mesmo jeito que eu fazia quando era pequenininha
Você é a mãe que sempre sonhei ter, e a que hoje só tenho nos sonhos. Obrigada por ter compartilhado 20 anos de sua vida comigo, e por acompanhar o resto da minha daí de onde você está. Eu sei porque você quis desmorrer por mim no dia de hoje. Quantas vezes eu já quis desviver para atravessar essa barreira invisível que nos separa e te abraçar, deitar a cabeça no seu colo e te implorar para nunca mais me deixar sozinha? Eu não sei por que não posso, mas você sabe. Você sempre soube mais do que eu. Por isso é que é minha mãe. Você sempre sabe o que fazer.
Obrigada por ainda existir.