Robbie Jacks

“Concheta Bibiana”. Sim, é isso mesmo que você leu. Esse palavrão em outra língua ia ser meu nome, reza a lenda aqui de casa: “Concheta Bibiana”. Mas uma sociedade racista fez minha mãe mudar de ideia.
Não que eu esteja triste por não ter sido homenageada com os nomes das minhas bisavós guerreiras. Embora elas tenham sido mulheres de fibra na época delas, os nomes escolhidos também devem ter sido maneirões só na época delas. Mas não é por isso que escrevo este texto.
Veja você: minha mãe é negra. Negra, professora, inteligente, linda, criativa, independente, forte, austera e muito educada. Ela já faleceu, mas isso é só um detalhe. Pois bem. Quando engravidou de mim, aos 45 anos, mamãe quis colocar na filha a combinação dos nomes de mulheres que vieram muito antes de mim e deixaram suas marcas na Terra. Talvez mamãe quisesse que eu herdasse a força delas. Ou a resistência. Ou a doçura, sei lá. E esta foi a maneira que encontrou.
Mas a barriga de mamãe começou a crescer, e as dúvidas também. “Como seria minha filha? Que aparência teria?”, mamãe pensava. Seu esposo, meu pai, era um italianão branco de cabelos negros e ela, negra de olhos de jabuticaba. Meu irmão nasceu “café com leite”, com o olhar de mamãe e o sorriso de papai. E eu, como viria? Mais “leite” ou mais “café”?
Seus devaneios a levaram a me imaginar numa sala de aula. Primeiro dia do ano letivo, turma cheia de pequeninos seres ávidos por aprender. A professora adentra o recinto, toda pomposa. Apruma-se na cadeira e abre seu caderno de frequência pela primeira vez.
Anelise...
PRESENTE!
A professora olha para a aluna, com a mãozinha levantada, dá um sorriso e volta a anotar no caderno.
Alfredo...
PRESENTE!
Bárbara...
PRESENTE!
Cláudia...
PRESENTE!
Concheta...
Mamãe enrijece no cantinho da sala. A professora pára e olha aquele nome inusitado. Volta os olhos ao início da linha para ter certeza de que não está ficando míope.
“Concheta Bibiana”. Sim, é isso mesmo. “Que nome diferente, deve ter saído de algum livro de história de 1927”, ela pensa. “Bom, esse nome deve pertencer a alguma menininha linda, branca, de cachinhos tão loiros quanto os de um anjinho”, conclui a mestra. Mamãe a olha, aflita. Já sabe o que está por vir.
“CONCHETA BIBIANA”, a professora chama, com entusiasmo, e procura a dona do nome com o olhar.
De lá do fundo da sala ergue-se uma mãozinha tímida e magrela. A palma da mão rosada contrastando com a pele pretinha.
“Pre-presente, professora”, diz a menina de olhos de jabuticaba e cabelos muito crespos amarrados com lacinhos vermelhos em duas marias-chiquinhas. A professora olha com cara de espanto, que logo se torna desdém como se duvidasse que tal criança fosse capaz de carregar um nome tão grandioso e antigo. O coração de mamãe se parte ao meio e, resignada, ela decide que talvez esse não seja o melhor cartão de visitas para sua filha.
E foi por isso, meus queridos, que hoje me chamo Roberta. Nome, aliás, sugerido pelo meu irmão. Mamãe não suportou a ideia de que sua filha passasse pelas humilhações que ela mesmo já havia passado, mesmo que tudo não passasse, naquele momento, de hipótese.
Porque o racismo faz isso com a gente: nos leva a imaginar o pior, a pensar o pior, e sabe por quê? Porque existem pessoas que SÃO o pior, que FAZEM o pior, e muitas vezes temos o desprazer de cruzar com esses infelizes em nosso caminho. O racismo faz com que a gente deixe de fazer muita coisa que gostaria por medo do preconceito, e nos faz tomar muitas outras atitudes pelo mesmo motivo.
O racismo existe. Machuca a alma e, por muitas vezes, o corpo. Enfraquece e fortalece. E tem seu preço.
Minha mãe tinha uma força descomunal, mas não há proteção materna no mundo que te impeça de sofrer preconceito. Eu só gostaria que ela soubesse que podia ter me batizado Concheta. Que aquele bebê que ela estava gerando ia carregar com força esse nome, e ia desafiar qualquer um que ousasse lhe levantar a voz. Mas ela não sabia que quem estava na barriga dela era eu.
O jeito que minha mãe encontrou foi o de me dar um nome forte para me fazer forte. E hoje eu sou Roberta, ou Robbie, como vocês me conhecem. Geniosa, sarcástica, defensora ferrenha dos meus ideais, amiga dos amigos. E muito orgulhosa da minha pele misturada, dos traços africanos e europeus que se misturam no meu rosto. E orgulhosíssima, é claro, dos meus cachinhos louros e crespos, que mamãe tanto sonhou mas não botou fé que eu ia ter.

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