Robbie Jacks



Foi o que você falou para mim hoje, mãe. Esse não foi um sonho como aqueles em que te sinto aqui, bem pertinho, mas mesmo assim foi intenso.

Você havia voltado do mundo dos mortos e queria saber como estavam as coisas. Parecia desnorteada, como se houvesse se desplugado da vida real por um ano inteiro e agora voltava, ainda incerta. Expliquei que papai estava cuidando de tudo, cuidando da gente, mas você não relaxava. Queria saber tintim por tintim o que estava acontecendo. Sabia que eu estava escondendo alguma coisa.

Sim, mãe, eu tinha um segredo. Eu estava de partida. Você não gostou da ideia, quis ver os documentos, brigou com o juiz, tentou desfazer o que já havia sido feito, mas eu te acalmei. “Era o mais justo, mamãe”, eu repetia. Aí você congelou novamente, como naquela noite em que te encontrei sem vida no chão da sala.

“Ah, não”, meu coração gemeu. Repousei a mão em seu ombro e apertei de leve, procurando a vida em seu corpo. Você arregalou os olhos ao meu toque.

“Desculpa, esqueci de desmorrer”, você me disse, com um rápido espasmo atravessando seu corpo. Meu coração afrouxou de alívio. Ela ainda estava aqui.

Te peguei pela mão e corri contigo para mostrar minha casa nova, improvisada num galpão no meio de um grande e verde quintal. Você quis saber o porquê. Te expliquei que era o mais justo, e que eu estava feliz. Muito feliz. O barrigão de 6 meses à mostra era a primeira imagem que eu quis que você tivesse quando abrisse os olhos. A decoração artesanal, o cheiro de mato fresco e o outono que se aproximava coloria de alegria esse meu sonho. Você só observava, um pouco menos receosa, talvez já se deixando contagiar pela minha empolgação. Talvez tivesse desacostumado com o lado de cá, talvez só quisesse ter certeza de que eu sabia o que estava fazendo. Eu sabia, mãe.

Esse não foi um dos sonhos em que me senti eu mesma conversando sobre minha vida real contigo, mas significou muito pra mim. Nele, você parecia desnorteada, como se houvessem te desplugado e só agora tivesse voltado para saber se está tudo bem. Mas nossa relação não é assim.

Você é a voz no meu ouvido dizendo “vai com calma”
.
Você é a bronca no final de uma briga “mas você é teimosa, hein?”

Você é o alento depois de um dia difícil “shhhh, passou, passou, Petinha”

Você é meu compasso moral quando minha educação falha “que vergonha, Roberta, não foi assim que te ensinei”

Você é meu incentivo quando quero desistir, mas não desisto “viu, filha, não falei que você ia conseguir?”

Você é meu desejo de bom dia, o último canto de boa noite

Você é meu coro quando alguma coisa, que não parecia que ia dar errado, dá errado “ai, minha mãe do céu”

Você é o vozeirão que me chama de volta
quando estou perdida

Você é aquela que faz sair da minha zona de conforto, que me empurra pro mundo, que me lembra de não depender de ninguém

Você é para quem dedico todas as minhas vitórias, quem acalenta todos os meus prantos, quem torce e briga e ama e cuida e apronta das suas aí de cima pra me ajudar

Você é minha intermediária com Deus, para quem eu rezo, rogo, peço e imploro, do mesmo jeito que eu fazia quando era pequenininha

Você é a mãe que sempre sonhei ter, e a que hoje só tenho nos sonhos. Obrigada por ter compartilhado 20 anos de sua vida comigo, e por acompanhar o resto da minha daí de onde você está. Eu sei porque você quis desmorrer por mim no dia de hoje. Quantas vezes eu já quis desviver para atravessar essa barreira invisível que nos separa e te abraçar, deitar a cabeça no seu colo e te implorar para nunca mais me deixar sozinha? Eu não sei por que não posso, mas você sabe. Você sempre soube mais do que eu. Por isso é que é minha mãe. Você sempre sabe o que fazer.

Obrigada por ainda existir.
Robbie Jacks





À beira do lago, ele desponta. Uma grande caixa vazada, ladeada por etéreas cortinas brancas, que voam como vestidos de mil e uma noites. A delicada seda acariciando e abraçando grossas vigas de madeira, alicerces de toda aquela construção.
Incrustado no centro, um colchão cor de creme meio sujo convida, mais por educação do que por vocação, os passantes ao descanso, sob o marchar preguiçoso das garças que por lá passeiam.
Ela nunca havia andado por aquele bosque. O perfume almiscarado que impregnava suas roupas e ardia em seus olhos também lhe era inédito. Nunca havia apreciado o voo suave do martim-pescador; sequer lhe conhecia de nome, só ouvira falar. Tudo era novo, especialmente aquela construção imponente, que completava a paisagem em tinta à óleo como um detalhe de última hora acrescentado pelo pintor.
Um bangalô.
Claro, já havia visto outros bangalôs. Ali, na beira do lago mesmo, vários outros cubos de madeira maciça se deixavam entrever por entre as molduras das vigas, produzindo um incômodo efeito caleidoscópio.
Mas aquele bangalô era diferente.
Aquele estava ocupado.
Sentiu vontade de chegar mais perto, mas não o fez. Talvez pelo zumbido das abelhas, ou pelo farfalhar das folhas, recuou. A indiscrição da luz do dia a inibiu. Decidiu voltar à noite.
.......
Coberta pelo pseudo-anonimato da escuridão, cumpriu a promessa que fez a si mesma e marchou de volta ao lago. O brilho dos tecidos brancos, soltos, que valsavam lentamente ao gosto da leve brisa, tingidos de prata pela luz das estrelas, era quase cegante. Nunca havia visto tanta delicadeza, tanta leveza em uma fôrma que parecia tão quadrada, tão simétrica, tão fácil de definir. Mas ela não conseguia definir. Nem quis tentar, na realidade. Mas notou.
O bangalô continuava ocupado.
Contemplou, ainda de longe, sua rígida estrutura. “Não chegue perto!”. Chegou. Teve medo. Queria entrar, mas não queria. Quer dizer, queria, mas não sabia se podia. Quer dizer, sentia que podia, vem aqui, sinta-se em casa, mas não muito. “Esse bangalô tem dono, e não é você ainda!”. Ela sabia, sentia que não seria bem-vinda. No plano das ideias, a vida se resolvia com folga, mas e se ela realmente abrisse a cortina e sujasse a alvura do pano com suas mãos de carne mundana?
Olhou para o longe e reviu os outros bangalôs. Todos repousavam impassíveis, adormecidos em seus latifúndios. As cortinas, recolhidas, exalavam um muxoxo triste por não poderem brincar na noite estrelada. As toras de madeira se arreganhavam numa carranca banguela, deixando à mostra os mesmos colchões de cor de creme sujo em seu interior. Vazios e sem vida, e muito menos convidativos.
Sentiu-se uma intrusa por querer estar no único bangalô ocupado. Mas não podia negar a fascinação. Veja bem, não era o mistério que a atraía, era o próprio bangalô. As cortinas deslindadas ocultavam as aberturas e criavam um sólido sóbrio e terno, fascinante e aterrorizante, e deixavam entrever apenas fragmentos do que realmente existia ali dentro. Será que havia, existia ou acontecia? Ou será que era ou apenas estava? Ela não sabia dizer. Ela já não distinguia seus devaneios da realidade. Havia mesmo este bangalô?
Sim, havia. E estava ocupado.
Demorou-se em sua frente, não sabe por quanto tempo, mas sentia em ondas nauseantes que ora deveria, ora não deveria estar ali. Não deveria querer abrir as cortinas, solucionar o mistério, descerrar a verdade. Não estava interessada em nada disso. Só queria que aquele bangalô estivesse vazio para ocupar com tudo o que carregava dentro de si. Estava cansada de caminhar, de contemplar. Queria descansar no colchão pouco convidativo. Mas ele estava ocupado com alguém talvez mais cansado ainda de estar ali, mas que não levantava, não ia embora, não vagava o bangalô. Isso deveria bastar para afastá-la.
Mas ela era teimosa, essa minha anti-heroína .
Ela quis ficar. Não porque gostasse de bangalôs, muito menos os ocupados, mas não havia casa, chalé, puxadinho ou tenda que lhe apetecesse naquele momento. Sentiu um apego surpreendente por aquela estrutura que pertencia a outrem, e se sentiu mal por isso. Não queria rasgar as cortinas, expulsar os ocupantes, fincar sua bandeira no meio do colchão sujo e proclamar aquele couro. Não mesmo. Só queria que aquele bangalô fosse dela, e só dela, e que pudesse entrar e sair e viver e deitar e apreciar a paisagem daquele ponto do lago.
Então resolveu esperar. Sentou-se na grama úmida, naquela noite fria e suave, e enrolou a barra do longo casaco de lã em volta do corpo e dos sentimentos. Estava pronta para descarregar, mas ainda não era a hora. Abraçou as pernas e encostou o queixo nos joelhos. Por quanto tempo esperaria, ela não tinha como saber, e confesso que também não sei. Enquanto escrevo esta história, talvez ela já tenha se contentado em dormir ao relento mais uma vez, agarrada em sua mochila de sonhos. Ou talvez ainda esteja lá, na beira do lago, sentada na grama, queixo batendo de frio nos joelhos, esperando apenas o sol aparecer, a cortina se abrir, o mistério se liquefazer na noite escura. Talvez ela ainda esteja esperando um sinal para entrar no bangalô. Talvez ela ainda esteja esperando para ser feliz.
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