3:30
ENTER
O cheiro do café fresco faz o que eu não tenho coragem
e te acorda suavemente. Mais um dia de vida, mais um dia com vida. Com gosto de
café e amor. “Tem dois banheiros nessa casa, porque a gente tá se espremendo
aqui nesse?”, você pergunta, com a boca cheia de pasta de dente. Eu rio, você
ri. Continuamos revezando o espelho.
3:00
Liga o celular, abarrotado de alertas. Abre alguns,
outras deixa em stand by. Talvez responda durante o dia, talvez não.
Dedos ágeis pulam de app em app procurando um sentido
para o dia que começa.
Abre as mensagens.
Um infinito de frases soltas, pedaços de prosas rasas
e simulacros de conexão.
Rola a tela para baixo quase com furor e encontra o
que procura. Uma conversa sem rosto, sem atualizações, visualizada e não
respondida há meses, soterrada por uma avalanche de rostos felizes e frases
prontas e memes que geram kkkks virtuais mas nem fazem um meio sorriso brotar
na boca. Relações líquidas.
2:30
“Mô, não esquece de trazer o vinho, tá? Já comprei
tudo para o nosso jantar, finalmente você vai provar minha famosa lasanha.
Espero que goste rs. Ah, a louça é sua ;)”.
2:00
O prato gira numa ciranda monótona, aquecendo mecanicamente
uma vida sem emoção. Os dedos tamborilam no mármore com impaciência. Nunca três
minutos duraram tanto quando enquanto a gente espera a roda girar. O prato
continua rodando e aquecendo, aquecendo e rodando, executando apenas o que foi
instruído a fazer. Circulou.
1:30
Nada me faz mais feliz do que chegar em casa e
encontrar você, sabia? Parece bobo, né, mas é tudo que eu sempre quis. Que
doença é essa que me faz querer saber em detalhes como foi seu dia, se alguém
te aborreceu, te contar as últimas do meu trabalho enquanto abrimos o vinho e
celebramos em silêncio a bênção de termos nos encontrado em meio a tanta gente
escrota, hein? Se tem cura, dispenso. “Abre o molho de tomate pra mim? Vou
começar o jantar”.
1:00
A tela do celular brilha, as pupilas imediatamente
dilatam. “É, um dia eu tenho que te levar lá rsrsrs”. Lá onde? Quem é você? O
cérebro demora um milésimo de segundo para processar a informação. As conversas
na tela são fios de uma mesma cor emaranhados em uma grande cama de gato. A
tela acende, a esperança brota, apenas para ser rapidamente frustrada. Pequenas
decepções do dia-a-dia, que se avolumam e torturam a mente. Vontade de jogar o
aparelho no lixo, desconectar, viver na Sibéria, meditar até atingir o nirvana
e nunca mais sair de lá. Ao invés disso, enche-se a agenda telefônica com nomes
e números e rostos que se fundem e derretem na falta de sentido disso tudo. Enche-se
o campo com baobás esperançosos, mas uma rosa é uma rosa, e sempre será uma
rosa, mesmo de longe.
00:30
A casa está novamente perfumada, lembrando vagamente
uma bodega italiana. Receita de mamãe. Você ia gostar dela. “Eu gosto”, você
diz, enquanto me abraça e dá um beijo na minha testa. Mamãe nos olha no
porta-retrato. Ela sorri. “Ela também gosta de você”, respondo. Abrimos o
vinho, partimos a lasanha. Tudo está em paz.
00:00
O microondas apita, despertando-o de seu transe.
Coloca o celular no bolso, abre a porta do aparelho e sente o cheiro quase
nauseabundo da comida congelada, agora fumegando e escorrendo um líquido branco
e pastoso para fora da caixa. Pega um prato, garfo e faca, não tem tempo a
perder. A lasanha e a solidão o esperam.