No ponto de ônibus, a caminho do trabalho, sou interceptada por um caloroso "olá". Eu conheço esse rapaz desde criança, mas não me lembro de termos trocado mais do que alguns acenos cordiais em todos esses anos cruzando caminhos da vizinhança. Eu não ia nem escrever sobre ele, mas o que aconteceu mais tarde me forçou a incluí-lo neste relato.
Depois de falarmos amenidades, e perguntar sobre minha vida, meu conhecido me contou que era poeta e que o fato de eu tê-lo encontrado num bar fumando e bebendo em pleno sol de meio-dia numa quarta-feira nada tinha a ver com vagabundagem: era poeta, reforçou, e vendia livros usados em banquinhas pela cidade. No momento, estava lixando umas tábuas, intercalando com goles de cerveja, tragadas no cigarro e papos com estranhos conhecidos como eu. Para finalizar a abordagem, me pediu dinheiro, qualquer moedinha e eu, sem saber pra que, por que ou como, dei. Ele é poeta, pensei, e eu apoio as artes.
Meu ônibus chegou e me despedi, levando comigo um pouco da surpresa pelo pedido inusitado, mas também me sentindo um tiquinho extasiada, afinal de contas, havia sido uma quebra inusitada na minha monótona rotina.
Até que desci em Maria da Graça. E avistei um velhinho que se segurava no muro do metrô. Sua perna direita tremia muito, e ele fazia um esforço desajeitado para controlá-la e continuar caminhando. Meu coração doeu, meu foco mudou, meu passo diminuiu e parei defronte dele, atônita. "O senhor precisa de ajuda?". Uma moça parou comigo. "O senhor está passando mal?". Ela me ajudava a questioná-lo.
O senhorzinho falava coisas desconexas, gaguejava, parecia desnorteado. A primeira coisa coesa que falou foi que queria água. Corri para pedir ao moço que vendia suco de laranja, mas ele disse que não tinha. Comprei uma garrafa num ambulante. Ele bebeu e pareceu um pouco melhor. Disse que estava voltando para Rocha Miranda, que sua esposa estava de cama, que havia sofrido um AVC e que estava ali, em Maria da Graça, porque uma pessoa havia lhe prometido R$10 para comprar o café da manhã dos dois, mas não a havia encontrado. Disse que ia para a Uruguaiana pegar o mesmo montante com outra pessoa.
Nesse momento, eu já não distinguia ficção de realidade, pensei no meu pai, meu velho paizinho, e o que pode acontecer com ele na rua, sozinho e confuso. Já não sabia se a história do velhinho fazia sentido, se ele havia sido uma boa pessoa quando moço, se havia feito alguém sofrer, se seus filhos o abandonaram por algum motivo nobre. Todas as histórias dos últimos dias se embolaram na minha cabeça, pensei no maluco que atentou contra a vida da apresentadora, no pai que matou a mulher e a filha, no babaca que roubou a carteira da mulher morta no acidente de trânsito, essas pessoas se juntaram em um só grande monstro, mas só o que eu via era um velhinho que também havia se transformado em todas as vítimas e precisava de ajuda.
Tirei dez reais da minha bolsinha, da mesma bolsinha de onde saíram as moedas que dei com relutância para o meu conhecido, e coloquei no bolso do senhorzinho. Pedi, já com a voz querendo embargar, que ele fosse para casa, pelo amor de Deus. Ele me olhou, com olhos embaçados pela catarata, e me disse "Deus abençoe". Toquei em seu ombro e quase o empurrei, devolvendo o pedido e implorando pra Deus que abençoasse ele ao invés de mim. Me certifiquei de que a menina iria levá-lo até o metrô e vim trabalhar.
Mas não estou conseguindo trabalhar. Estou aqui, pensando no velhinho, querendo saber se ele chegou em casa, ou se está tendo um tratamento digno onde quer que esteja. Pensando se ele terá o que comer e, se não tem, o que deu errado na vida dele para que não tivesse.
Cheguei ao trabalho com lágrimas nos olhos, que desabaram de vez quando encontraram um colo. Estou me sentindo pequena, ridícula, incapaz. A nossa "chef de cuisine" me consolou , dizendo para eu ficar bem porque eu fiz o que poderia ser feito, e que Deus está vendo minha boa ação. Mas eu só consigo pensar: e quem é que está olhando por esse velhinho?