Sofia levantou-se, meio zonza, meio triste. A noite havia sido confusa, mas de nada lembrava. Seus olhos, ainda vermelhos de lágrimas e borrados da maquiagem pesada, vagaram pelo quarto. Tudo o que havia sobrado parecia estar no lugar. O teto em cima, o chão embaixo, a porta à esquerda e a janela à direita. Passado o torpor do primeiro piscar de olhos da manhã, Sofia se deu conta de que era ela quem estava deslocada. Seus ossos doíam, e, ao tentar levantar, uma dor lancinante na testa lhe obrigou a deitar-se mais uma vez, contorcida e amarga de uma ressaca mais física do que moral.
Com a dor ainda latejando em sua têmpora direita, olhou sua cama, e percebeu que estava vazia. Novamente. Será que ele realmente estivera ali? A noite havia sido tão insana, amigos, uma tequila, conversas, uma dose de whisky, risos, duas taças de vinho, um flerte, mais amigos, meia lata de energético e um pó estranho que, disseram, transformava rico em mendigo, preguiçoso em atleta. Tudo para esquecer aqueles olhos cor de fogo do dragão tatuado naquele braço que a envolvia por completo, protegendo-a dos dragões da vida real. Tudo, tudo, tudo caía no limbo entre a sensatez e o delírio quando saía com seus amigos.
No entanto, como pudera esquecer!, ali estava ele, forte como sempre, lindo como nunca. Sofia sentia que todos os drinks do bar não a fariam imaginar aquela silhueta máscula (e agora um tanto brilhante) desenhada pelas luzes neon no canto da pista de dança. O que ele estava fazendo ali? E estaria sozinho? Será que já estaria com outra? Sofia travou uma batalha mental por exatos dez segundos antes de partir, decidida, para cima dele. Se estivesse sozinho, pensou, será que ainda sentiria alguma coisa por ela?
Na pequena distância que separava o bar do canto esquerdo da pista de dança onde se encontrava seu ex, Sofia pensou no quão difícil estava sendo esquecê-lo. Os dias e as noites eram fisicamente computados por ela apenas pela execução de suas obrigações diárias, como trabalhar, jantar, levar Duke para passear. Em sua mente, no entanto, só havia um dia, ou melhor, fragmentos tão pequenos e tão similares que confundiam o calendário: como uma vitrola engasgada em um pedaço particularmente meloso de uma música de amor que estourou há 10 anos passados, Sofia se prendia loucamente aos momentos felizes que passou ao lado dele. Uma sequência de beijos apaixonados, danças, viagens, carinhos, e até as compras que faziam despretensiosamente no supermercado foram devidamente mixadas, glamourizadas e arquivadas na primeira prateleira de sua memória, ao alcance fácil do coração.
No meio dessa confusão de espectros felizes, toda a alegria se foi ou, como Sofia escreveu em sua agenda, "abriram o ralo da minha vida e todas as cores escoaram". Da casa que compraram e mobiliaram juntos, só restaram os móveis maiores, e as paredes nuas. Ah, e o cachorro. Aliás, o cachorro foi idéia dela, já que Sofia sempre morou em apartamento e nunca tinha tido a oportunidade de dar seu carinho a um bicho de estimação. Duke, por pura ironia, andava amuado e quase não comia, pois sempre havia sido mais apegado à ele. Sofia costumava achar graça da dedicação de Duke, sempre andando atrás do dono. Quando este se foi, Sofia percebeu que era Duke quem devia achar graça dela, que também vivia em função do ex-dono.
E ele, ao vê-la se aproximar, quase não acreditou. Por meses, havia tentado contactá-la, mas sem sucesso. Chegou a ir até o prédio onde trabalhava, mas Sofia se recusou a vê-lo. Talvez eu tenha esquecido de mencionar, mas Sofia era tudo, menos uma perdedora. Seu coração apertava como quisesse se enforcar em suas veias e artérias cada vez que pensava nele, mas Sofia era orgulhosa. Ele ainda veio com um papo de amizade, mas Sofia estava decidida. Se ele não a queria por inteiro, não teria nem a metade. E o ignorou completamente durante meses.
Mas ali, naquela luz que o deixava divino, com o nível de álcool acima do permitido a qualquer cidadão que não deseja ver o sol nascer quadrado, com a batida alta da música melosa de 10 anos atrás fazendo seu corpo pulsar involuntariamente, Sofia marchou com vontade para cima dele, postando-se a cinco centímetros daquele rosto que viu tantas vezes ao amanhecer, com os cabelos negros achatados e para cima, como se o travesseiro espertinho tivesse lhe dado um novo look moicano da noite para o dia. E aquelas linhas que se formavam pela expressão de seu sorriso já arriscavam aparecer mesmo em seu rosto sério. Sentia que os créditos não lhe haviam sido propriamente dados por aquelas marcas, já que tantos risos colocou naquela boca. Ai, aquela boca, sempre tão macia e convidativa, envolta pela barba, sempre por fazer, que fazia cócegas quando a beijava devagarinho, e esfolava seu rosto quando o clima esquentava...
Ele a olhou nos olhos e, por um minuto, foi como se nunca houvesse tido um fim. Beijaram-se como antes- os mesmos lábios, os mesmos movimentos, mas o antigo foi renovado pela excitação do esquecimento, e o resultado foi como se seus lábios nunca houvessem tocado. Seu hálito nunca esteve mais doce; o calor que subia seu corpo, nunca mais forte. Beijaram-se tanto que não se sabe como foram parar entre aquelas quatro paredes novamente. As paredes, que um dia testemunharam uma vida que se fluía junta, emoldurando o primeiro encontro, os aniversários, o dia em Paris, a noite em Santiago, tudo com o profissionalismo dos amadores da arte do Preto & Branco, agora eram cúmplices frias e silenciosas de um reencontro impetuoso e desajeitado que não devia acontecer. Até Duke, o cachorro, mesmo em toda a sua amargura, parecia sentir-se envergonhado, recusando-se a latir para o velho amigo que carregava sua dona pelo corredor, levando-a pelo labirinto da casa sem cerimônia nem hesitação para o quarto onde antes era feito amor. O que acontecia agora Duke não sabia, e o tamanho do bocejo que deixou à mostra os dentes afiados (que só mostravam sua bestialidade na bola colorida- presente da vovó) evidenciaram que ele, de fato, não se importava.
E Sofia, naquela manhã onde o Sol entrou pela janela pela primeira vez em meses, olhou para o lado e viu novamente seu outro travesseiro vazio, ainda com a marca (e com o cheiro, ah, o cheiro!) da cabeça de seu erro. Imaginou se seu cabelo ainda acordaria punk como nos velhos tempos. Velhos tempos. Tempos. Velhos.
Sofia se lembrou então de toda a dor que passou, de todas as vezes que acordou abraçada no travesseiro dele, inalando com fervor a fragrância que ele havia deixado para trás, fragrância essa que agora voltava a sentir, e que ficaria ali até o dia em que seu próprio cheiro dominaria novamente sua cama. Sua vida estava longe de ser ideal- ela ainda esperava um príncipe. No entanto, a claridade daquela manhã evidenciou o que não podia mais se esconder.
Suas resoluções foram interrompidas pelo aroma inebriante de café quentinho. É, Sofia também se esqueceu do café-da-manhã maravilhoso que ele costumava preparar. Antes, claro, das mentiras, das brigas e da solidão...
E lá vem ele, quarto adentro, com o café e o coração caprichosamente alinhados na bandeja. Oferece-lhe uma xícara, que ela sorve de bom grado. Passa manteiga em seu pão, que Sofia morde com gosto. Derrama mel em suas panquecas e em sua camisola, que faz Sofia sorrir, enquanto lambe dos dedos o excesso da delícia das abelhas. Por último, estende-lhe o coração, cuidadosamente envolto em desculpas e promessas de fidelidade e felicidade, ao que Sofia, com toda a educação que lhe foi dada, responde:
-Te lo agradezco, niño, pero no.
E o Sol brilhou mais forte.